O atelier da Ana foi uma das razões pela qual este blogue começou.
Partilhamos o mesmo espaço e convivemos diariamente há mais de dois anos. Conheci dois ateliers antes deste.
O primeiro era uma mesinha numa casa minúscula. O segundo, uma sala com uma mesa maior, a mesa que ainda hoje tem, na casa para onde mudou a seguir. Este é uma cave, um covil ou como ela gosta de lhe chamar: um bunker.
![]() |
(clicar para ampliar) Vista geral do atelier, uma sala rectangular. |
O espaço muda-se facilmente. Caótico, está cheio de coisas por descobrir. Por vê-lo todos os dias, habituei-me ao espanto de reparar em coisas diferentes consoante o meu estado de espírito.
'Isto é uma gruta do Ali Babá, não é?', pergunta a Ana enquanto vai retirando caixas de madeira, sabe-se lá de onde. 'Já nem me lembro do que está aqui... ah! É isto!'
A Ana tem uma caixa - tem quase todos os trabalhos em caixas de sapatos, de vinho, de jogos - onde guarda desenhos que vai fazendo. Nesta, 'um bando de solitários', personagens que, embora estejam em grupo, se sentem sós. Já a vi desenhá-los: fá-los quase sempre quando conversa com outras pessoas, quando está em jantares, independentemente do seu grau de envolvimento na conversa.
![]() |
'É estranho, não é? Cortei acima dos olhos para ficar ainda mais esquisito.' |
Além desta, há mais: abre uma caixa com fotografias antigas, quase todas a preto e branco. São fotografias encontradas na rua, por acaso. Aparecem-lhe aos pés e jura que só temos que reparar para começarmos a ver. 'Toda a gente é capaz de encontrar. Eu encontro e não faço nada por isso... É preciso estar com atenção e pensar que se quer encontrar'.
Vídeo onde a artista mostra parte
da sua colecção de fotografias encontradas
A sua mesa de trabalho é muito vivida. Podem encontrar-se as coisas mais inesperadas: agrafos, há muitos, porque as agrafagens são uma parte importantíssima do seu trabalho. Mas além deles, há clipes, caixinhas, brinquedos, sementes, objectos em loiça, folhas de árvores, pequenos plásticos ou ferramentas.
![]() |
Um pedacinho da grande mesa de trabalho. |
A parede em frente também não desilude o observador. Desenhinhos, cabides, textos... A sensação é a de que estamos sempre a ver trabalhos a meio, pequenas coisas que ainda não encontraram o seu destino final e, entretanto, pousaram ali à espera.
![]() |
A parede em frente à mesa. |
O Universo é um livro de artista de 2003 no qual aparecem fotografias da sua mesa de trabalho quando o seu atelier era só isso: uma mesa de trabalho. É um livro de registo, de atenção aos pormenores. Por não querer que nada fique desvalorizado, a Ana presta atenção a cada indivíduo na sua mesa tão cheia. Não se torna obcecada, mas valoriza-lhe a energia.
O Livro Empanturrado são páginas e páginas de comida que empanturra o olhar. Não há como evitar a má disposição visual quando se folheia este livro.
![]() |
Livro Empanturrado. |
O trabalho da Ana e o seu atelier não me deixam mentir: os restos são a matéria prima. Resgatar objectos do apagamento definitivo e dar-lhes um destino é o mais importante. E até as sobras das sobras são utilizadas. 'Trabalho com aquilo que as pessoas deitam fora. Faço aquilo que posso com o que tenho'.
'Não fujo do erro, da hesitação, do absurdo. Penso que a arte quando é verdadeira deve ter tanto de absurdo como a própria vida. Uma e outra buscam incessantemente o seu próprio sentido.'
![]() |
'O que eu fizer hoje será muito importante, por isso eu vou trocar um dia da minha vida por isso' |
A Ana é, essencialmente, uma coleccionadora. Colecciona desde brinquedos antigos a bocadinhos de plástico ou botões. Mas as suas colecções são especiais. Exceptuando alguns livros, são todas constituídas por coisas encontradas.
![]() |
Parte da colecção de botões encontrados no chão, arrancados de calças, etc. |
O brio com que trata cada objecto que encontra é o mesmo de quem se dedica a polir diamantes. Por vezes, vêm em saquinhos de plástico que ela retira do fundo da mala, coloca em água e sabão e esfrega, esfrega, lava, lava.
São raras as coisas que compra. O custo dos materiais é quase reduzido a zero. 'Suponho que seja por nunca ter tido muito dinheiro, muitos meios. À partida, seria sempre uma falhada. Mais uma vez, interessa-me fazer o que posso com o mínimo que tenho'.
As agrafagens são também uma forma de valorizar o ínfimo: papéis sem fim que não aquele a que foi destinado originalmente - por exemplo, folhas de revistas ou livros antigos - para os quais não olharíamos mais. A Ana obriga-nos a olhá-los. Rasga e agrafa, papelinho por papelinho.
![]() |
A Ana e duas agrafagens. |
Quando a Ana vai trabalhar, geralmente ouve entrevistas. Por vezes, conversamos enquanto trabalha.
Mas não é só artista plástica. É também poeta e faz sentido: é uma questão de linguagem. Às vezes está no mood de escrever, outras, de agrafar, mas os poemas também fazem parte deste espaço.
![]() |
'Socorro! Socorro! - gritou, - Tenho um [significado oculto]' |
Artist Statement de Ana Tecedeiro.
Sem comentários:
Enviar um comentário